A justiça na filosofia de Platão

A justiça na filosofia de Platão

uma inconformidade com a sentença de morte Sócrates? Ou, o nascimento do platonismo.

Não seria exagero afirmar que a filosofia de Platão tem um grande mote, um grande problema filosófico a ser elaborado e, talvez, resolvido: o que é a justiça?

Para muitos estudiosos de Platão, essa pergunta não apenas marca a entrada do pensador na filosofia, mas também todo o desenvolvimento desta; é a pergunta presente em suas primeiras e últimas obras. Porém, é com um dos maiores diálogos platônicosA República – ou da Justiça — que a questão é coroada.

Quando falamos do tema da justiça em Platão, devemos nos atentar para um evento específico em sua vida que pode ser visto como um grande divisor de águas: não somente marcaria, de maneira definitiva, sua entrada para a filosofia, como também demarcaria a problematização fundamental que o pensador faz sobre a justiça.

Trata-se da condenação e da execução de seu mentor, Sócrates: o homem sábio de Atenas.

Conforme nos informam muitos intérpretes, o discípulo de Sócrates teria ficado extremamente angustiado, melancólico e revoltado por causa da condenação de seu mestre. 

Sua revolta e angústia se precipitaram no seguinte diagnóstico de Platão em relação à sua sociedade e à sua cultura: o contexto político e cultural da Grécia era completamente injusto; os indivíduos que julgaram e sentenciaram Sócrates eram indivíduos representativos na sociedade, isso quer dizer que a cultura grega e os modos políticos de operar a sociedade eram injustos e corruptos.

Jean-François Mattéi ilustra de modo muito evidente essa relação de Platão com a condenação de Sócrates, e seu diagnóstico perante a sociedade grega da época:

A indignação perante a condenação daquele que o oráculo de Delfos considerava o mais sábio dos homens determinou a entrada de Platão na filosofia. Ele se mostrou ainda mais revoltado porque os democratas fizeram perecer aquele que poupara um dos deles, na época em que os próprios democratas foram banidos de Atenas. Platão tirará, então, a conclusão filosófica do escândalo de tal injustiça. (2010, p.23)

Platão associou o modo democrático de governar com o fator da injustiça perante a condenação de Sócrates. Como a democracia era gerida por indivíduos com uma certa cultura, hábitos e modo de pensar, esses gestores, então, deveriam ser criticados e ter seu modo de pensar retificados. Assim, ao retificarem seus hábitos e sua cultura (e seu modo de pensar), retificariam sua forma de governar.

A ferramenta adequada para a crítica e retificação dessa cultura só poderia ser uma: a filosofia. Tal como nos revelou Platão em uma carta:

Fui necessariamente levado a dizer, em um elogio da reta filosofia, que é graças a ela que se pode reconhecer tudo o que é justo tanto nos assuntos da cidade quanto nos dos particulares. (Sétima carta, 326a)

Dessa maneira, estamos diante do que podemos chamar de “missão” filosófica de Platão: captar a essência do que é justo. Cumprindo essa missão, ele pôde  apontar, por consequência, os meandros e as nuances daquilo que é injusto, ou seja, a cultura e a política da sociedade grega democrática. Ora, o contexto social de Platão era a democracia ateniense, e o pensador julgava essa sociedade como decadente por completo, e o mais forte indício de seu julgamento foi a injusta condenação de Sócrates.

Na visão platônica, somente através da filosofia seria possível se erigir uma sociedade justa. E quando o filósofo falou de filosofia, ele se referia aos próprios ensinamentos de Sócrates e não à filosofia vigente, a sofística.

Com isso, Platão se lançou em sua missão de tornar presente a justiça na sociedade, nem que para isso fosse necessário reformar, através da refutação lógica, toda uma maneira de pensar — a maneira de pensar da sociedade e da cultura Grega como um todo, representada pela democracia, pelos poetas e pelos sofistas. Em suma, Platão se voltou para a justiça no que diz respeito ao Século de Ouro da Grécia antiga.

"Socrates Addres", Louis Joseph Lebrun, 1867

Da Apologia à A República


Antes de prosseguir com as principais objeções do filósofo quanto ao que ele considerava como injusto e as suas reflexões filosóficas quanto ao que seria a justiça, é importante abordar aqui algumas características dos diálogos platônicos em que mais podemos ver a questão da justiça.

De forma unânime entre especialistas de Platão, as duas principais obras que abordam a questão da justiça e da injustiça são: Apologia de Sócrates e A República.

O diálogo Apologia de Sócrates constitui um dos símbolos desse sentimento de “injustiça” (Cf. Mattéi, 2010). Nesse texto, Platão elaborou uma defesa construída pelo próprio Sócrates acerca da acusação e julgamento em Atenas. A maneira como Sócrates encarou sua condenação e a própria morte, muito pelo contrário do que ocorre de modo geral, foi serena e tranquila. Não havia traço de indignação e inconformismo no comportamento dele, mesmo que em suas palavras de defesa evidenciou, a todo tempo, o quão injusto era aquele veredicto.

Em A República, que é o segundo maior diálogo de Platão, datado por volta de 370 a.C — quase 30 anos depois da escrita da Apologia — encontramos uma extensa imersão nos caracteres gregos que envolvem a questão da Justiça. Nessa obra, a personagem Sócrates debate com diversas personalidades históricas da Grécia a fim de refutar muitos pressupostos de figuras gregas eminentes a respeito do que seria a justiça.

Adiante, faremos um breve retrospecto desses principais momentos ao longo da busca de Sócrates pelo conceito de justiça.

"A relação do indivíduo Estado", John LaFarge, 1905

A justiça como algo absoluto e as quatro refutações socráticas da injustiça

Céfalo

A primeira das conversas de Sócrates em A República é um debate com um determinado comerciante ateniense, pessoa que já se encontrava em idade avançada, Céfalo. Nesse diálogo, o filósofo busca rebater a ideia de justiça de Céfalo que é a seguinte máxima: a justiça é nunca mentir, e sempre devolver aquilo que lhe foi tomado.

Sócrates o rebate da seguinte maneira:

(…) todos certamente concordariam que se um homem em seu juízo emprestasse suas armas a um amigo e as pedisse de volta quando estivesse fora de seu juízo, o amigo não deveria devolvê-las e não estaria agindo justamente se o fizesse. Tampouco deveria alguém se dispor a dizer toda a verdade a alguém que está fora do seu juízo. (2019, pgn. 40 – Livro: 331c)

Apesar de soar muito estranha e adversa essa refutação de Sócrates, o que ele quer dizer, se contrapondo a Céfalo, é que existem momentos em que se deve mentir. E, além disso, às vezes, haverá situações em que será justo não devolver aquilo que foi tomado de outrem. Por exemplo, se o objeto que deveria ser devolvido é uma arma de um assassino, o justo não é devolvê-la, pois armas são usadas para atos injustos.

Polemarco

Eis que, diante dessa refutação, surge Polemarco, a fim de resgatar o que Céfalo havia dito. Polemarco revela que essa máxima é derivada daquilo que Simônides, um grande poeta, ensinou. No entanto, o poeta não quis dizer exatamente que devemos, literalmente, dar tudo o que fora tomado, mas sim dar a quem merece. Em outras palavras, Polemarco defende que ser justo é ajudar os amigos e prejudicar os inimigos (os amigos são os que merecem).

De acordo com Sócrates, é um tanto problemático defender isso, já que uma mesma ação poderia ser justa por um lado e injusta por outro. Maltratar amigos é injusto, maltratar inimigos é justo, e isso será contraditório. No entanto, devemos notar que, na conversa anterior com Céfalo, Sócrates diz que mentir para alguém fora de seu juízo não é algo necessariamente injusto. Então, por que agora o filósofo requer esse critério de “universalidade”, sendo que antes soou tão plausível uma ideia de justiça “contextual” e particular?

De fato, A República é um texto em que muitas vezes o próprio Sócrates não consegue vencer suas contendas filosóficas, e até se enreda em contradições e aporias. Isso diz respeito ao pressuposto de que Platão queria demonstrar que a justiça de forma imanente, no mundo material e na sociedade vigente, era algo inexistente — eis porque seu mestre havia sido morto. E se a justiça é inexistente de certa forma, ao se debruçar sobre a realidade para falar dela, sempre se irá cair em contradições. O próprio Sócrates deveria cair em contradição quando reportasse à vida tal como ela era no Século de Ouro na Grécia para defender algum tipo de justiça em uma sociedade que estava completamente corrompida e injusta.

Trasímaco

Prosseguindo as interlocuções socráticas em A República, a próxima é com o sofista Trasímaco. Para este, a justiça seria a conveniência do mais forte.

Mas, o que o famoso sofista quer dizer com isso?

Trasímaco faz uma leitura da justiça possível, e essa é possível porque ocorre à sua frente. Em outras palavras, Trasímaco não apresenta uma “ideia de justiça”, tal como o próprio Sócrates o faz, mas comenta acerca do que as pessoas comumente vivem sobre o que é a justiça.

Conforme sua interpretação, a justiça depende das leis que vigoram em uma sociedade. Em qualquer tipo de governo (democracia, oligarquia, monarquia), sempre existe um grupo que governa, e mesmo que esse grupo represente a população, como na democracia, as leis partem dele, não da população como um todo.

Assim sendo, a justiça que deriva das leis, se trata da perspectiva de um grupo. Esse grupo, por sua vez, tal como nota Trasímaco, se encontra no poder, por ser constituído pelos mais fortes, afinal. Nenhum grupo que governe irá forjar leis que possam ir contra si próprio. Dessa maneira, a justiça sempre há de convir com o interesse do mais forte.

Sendo veementemente contra essa proposição, o Sócrates de Platão já evidencia seus contornos idealistas. Vale lembrar, pois, o inconformismo de Platão diante da condenação de seu mestre. Podemos dizer que essa sentença é fruto dessa justiça que Trasímaco descreve. Mas que tipo de justiça é essa que mata inocentes? Sendo assim, Sócrates refuta Trasímaco dizendo que os poderosos podem errar em seus juízos legislativos e, quando erram, estão errando no que diz respeito à democracia grega, ou seja, estão faltando com justiça.

Adimanto

Por fim, Adimanto, a reboque de Trasímaco, complementa que o justo é o fraco, porque se ele fosse forte e capaz, cometeria injustiças, e o que importa não é ser justo, mas parecer ser justo.

Diante disso, deve-se notar que quando se está no poder, sempre se comete injustiças, de uma forma ou outra. A manutenção do poder depende de seu exercício, e o exercício do poder está para além do que é justo ou injusto. Mesmo assim, por mais injusto que o governo venha a ser, deve aparentar-se justo à sua população.

Como dissemos, A República não se refere exatamente à vitória do argumento socrático, mas da pavimentação de um terreno onde a ideia platônica de justiça possa florescer.

De todo modo, ao fim, Sócrates apresenta a justiça como um estado harmônico da alma/psique humana. Em outras palavras, só poderá haver uma sociedade justa a partir do momento em que as pessoas que compõem essa sociedade agirem de forma justa — e as pessoas só podem agir de forma justa se estiverem psiquicamente equilibradas.

Mas, em que consiste esse equilíbrio?

"Psique abrindo a caixa dourada", John William Waterhouse, 1903

O equilíbrio da psique

De acordo com Platão, a alma/psique (psyché), estaria dividida em três partes: 

  • a parte racional
  • a parte irascível
  • a parte apetitiva

A parte apetitiva seria onde se encontram os desejos mais primitivos, como fome, medo, libido; a parte irascível conteria os sentimentos mais elaborados como amor, coragem, raiva; e a parte racional conteria a sabedoria.

A sabedoria deveria manter a conduta da irascibilidade, e do apetite; a irascibilidade, por sua vez, através da sabedoria, deveria conduzir o apetite, que somente seria conduzido indiretamente pela sabedoria.

Ações provenientes dessa harmonia hierárquica seriam ações justas. Quanto mais um indivíduo se cultivar na sabedoria, mais se torna virtuoso quanto aos seus sentimentos e quanto ao seu desejo. Por exemplo, uma pessoa moderada seria uma pessoa que sabe dosar seus apetites — eis uma virtude da alma.

E a forma de cultivar a sabedoria é a filosofia.

Agindo de maneira justa, podemos erigir uma nova sociedade, uma que seja justa — essa nova sociedade é a República idealizada por Platão.

Platão enxerga em Sócrates um modelo de alma justa, mais do que refutar as personalidades gregas do período da democracia. Sócrates é o porta-voz dessa nova sociedade.

Entretanto, devemos nos atentar que, para Platão, a democracia não poderia ser modelo de sociedade justa. Ora, em seus vislumbres, somente através da sabedoria filosófica era possível alinhar a alma para ser plenamente justo, então, a partir disso, ele lança a polêmica ideia do “filósofo-rei”: uma espécie de monarquia, ou mesmo ditadura, sob a égide dos, ou do mais sábio cidadão.

É importante enfatizar que a sabedoria filosófica para Platão se constituía em metafísica. Sendo assim, para equilibrar a alma deve-se conhecer o transcendente, o mundo das ideias — o equilíbrio da psique é uma sabedoria ideal. Por isso, todas as definições, de Céfalo, de Polemarco, de Trasímaco e de Adimanto, são insuficientes, pois se debruçaram no mundo das sombras e não advieram da verdade, do mundo das ideias..

Por mais arcaico que seja o modelo de Platão para a psique, ele inspirou e ainda se reflete em muitos estudos psíquicos e neurocientíficos — passando pela psicologia e indo até a neurociência.

Podemos, então, entender que sem os apelos transcendentais de Platão, de fato, fica difícil estabelecer qualquer parâmetro moral. Nesse sentido, se nossa mente possuir essas três instâncias que ele alega (a apetitiva, a irascível e a racional), nossas ações éticas, assim como nossa felicidade, provavelmente dependem de um equilíbrio mental e emocional — que é laborado através do cultivo de si. Ou seja, primeiro “nossa justiça”, depois, “qualquer justiça”.

Referências

Borheim, Gerd A. Introdução a filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 2009.

Khan, Charles. “Plato´s theory of desire” In The Review of Metaphysics, Vol. 41, No. 1 (Sep., 1987), pp. 77-103.

Mattéi, Jean-François. Platão. Tradução de Maria Leonor Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

Mesti, Diogo N. “O acordo legal justo proposto no Livro II da República de Platão” In Kriterion 58 (136) • Jan-Apr 2017 • https://doi.org/10.1590/0100-512X2017n13603dnm.

Pessoa, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. São Paulo:  Cia das Letras, 2006.

Platão. Diálogos III – Fedro, Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton, Fédon. Tradução e Notas Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2021.    

_____. A República. Tradução e Notas Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2019.

Vlastos, Gregory. “Justice and happiness in the Republic”. In: VLASTOS, G (éd.). Plato. A Collection of Critical Essays Garden City: Doubleday, 1971. pp. 66-95.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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