Em preto e branco, um menino branco olha pela janela aberta de dentro de um carro.

A SUSPENSÃO DO JUÍZO

ou da SENSATEZ DA CRITICIDADE

Mas, isso é somente um fato, um acontecimento, não quer dizer nada para além de si próprio, para além do que foi descrito.

A frase acima nos reporta ao que, em filosofia, podemos chamar de “suspensão do juízo”. Os frutos de nossos juízos, geralmente, são expostos na forma de conclusões — as boas e velhas “morais da história”. Ou seja, é comum que essas conclusões possuam uma pretensão de valor “universal”, um valor de generalização. Por outro lado, quando operamos em um caráter de “suspensão do juízo”, nos abstemos de concluir de maneira generalizada, ou nos abstemos completamente da conclusão.

Ora, vamos deixar isso ilustrado:

Certa vez contaram-me que uma pequena criança havia adoecido e faleceu precocemente em uma casa de campo no interior. A mãe, para evitar maiores traumas, mudou-se com seu marido para o centro urbano. Anos mais tarde, foi concebido seu segundo filho. A criança cresceu e, já com seus quatro anos, a família realizou uma viagem ao interior, Na estrada, passaram exatamente pela antiga casa deles, a casa onde o primeiro filho viera a falecer. Pela janela do carro, a criança no banco de trás apontou a janela de um dos quartos da antiga casa do casal, além da familiaridade de seu gesto, ela disse: “olha o meu quarto”.

Diante dessa história, podem vir as afirmações de que a criança que apontou o quarto haveria de ser a reencarnação de seu irmão; esse pressuposto poderia servir para alguém arguir que existe reencarnação, logo todo um mundo transcendente para sustentar essa reencarnação. E a reencarnação é uma conclusão universal, ou seja, todos os seres humanos reencarnam.  

Contudo, podemos de fato fazer esse juízo? A resposta é “não”.

Se formos acurados em nossa crítica, jamais faríamos qualquer tipo de juízo após a descrição desse ocorrido. Nesse fato, a criança apenas apontou a casa e disse “olha meu quarto” e nada mais. O que há por trás disso são bilhares de possibilidades, ou nenhuma. Por exemplo, pode ser apenas um chiste mental da criança, e ocorrem diversos chistes mentais todos os dias, com crianças, adultos, idosos. 

Sendo assim, a sensatez reflexiva nos diria diante da pergunta: qual a “moral da história”?   Não há moral, e se há, eu não sei. E assim, estamos diante de uma “suspensão de juízo”.

Essa suspensão a que me refiro ao longo deste texto fica bem explícita na famosa frase do filósofo vienense Ludwig Wittgenstein: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (2008, p. 261). A frase encerra a obra Tractatus Logico-Philosophicus. Não irei tratar a fundo dessa frase, muito menos dessa obra aqui, mas aponto que Wittgenstein pertence ao que podemos denominar de tradição “crítica” na filosofia — a tradição crítica diz respeito a toda filosofia que se preocupa em investigar os limites do conhecimento humano, assim como busca apontar em que momentos estamos a ultrapassar esses limites.

Vale deixar claro neste ponto que a “suspensão” que faço alusão neste ensaio não quer tangenciar a tradicional epoché, nem mesmo em sua versão cética do antigo filósofo Pirro de Eléia — já que a “suspensão” que descrevo aqui não se preocupa em incidir em qualquer tipo de paz espiritual, talvez em consequência, mas não como propósito. Também não pretende se aproximar da versão contemporânea do termo, encontrada na fenomenologia de Husserl, que implica em método fenomenológico/científico. Associo-me e me inspiro mais na tradição da filosofia crítica e, portanto, a “suspensão” que faço alusão se trata apenas de um exercício cotidiano.

Retomando: muitos de nossos juízos universais, não somente os da ciência, ou da religião, mas os juízos corriqueiros do cotidiano, nossos juízos de hábito, se consistem em indevidas generalizações. Pode nos parecer banal e trivial o apontamento desse procedimento chamado “suspensão crítica”, mas devemos nos atentar para o fato de que ultrapassar os limites de nosso conhecimento podem incidir em graves ocasos em nossas vidas. Por exemplo, grande parte de nossos preconceitos são frutos de juízos universais indevidos, tal como afirmar hábitos a partir de uma característica fisiológica comum às pessoas: “todas as mulheres são histéricas”. Esse juízo universal é um erro, visto que não pode ser categoricamente universalizado, assim como passa a se constituir em um hábito preconceituoso em nosso cotidiano.   

O que mais quero chamar à atenção aqui é que a religião é uma das atividades humanas que mais comete juízos universais indevidos. Haja visto que ela, e na grande maioria de suas manifestações e variedades, abusa de afirmações metafísicas, sempre ultrapassando os limites do conhecimento humano. A Bíblia, por exemplo, se constitui em um grande livro de episódios e vivências humanas que sempre busca conclusões generalizadas a respeito de suas narrativas, sendo assim, fonte de incentivo de uma série de preconceitos habituais entre nós.    

Além de Wittgenstein, um outro grande pensador da tradição crítica, que pode ser considerado o formalizador dessa acepção é Immanuel Kant. Ele investigou, em minúcias, como a metafísica especulativa é, fundamentalmente, constituída de desrespeitos a nossos limites cognitivos. E, assim, as religiões, por terem a metafísica em seu núcleo, ainda mais as religiões de matriz cristã, se encontram abarrotadas de ponta a ponta de desrespeitos aos limites da cognição humana. Até quando não iremos admitir que nossa fé não pode ser objeto de discussão e debate? Crer é somente crer, e não há nenhuma moral ou conclusão por trás disso. Posso crer em deuses, agora dizer como eles são, quais são os seus planos, isso é total falta de sensatez critica; imprudência, para não dizer inescrupuloso maquiavelismo ideológico. 

Minha fé no transcendente, ou nos deuses, é completamente genuína e justificada. Contudo, qualquer descrição transcendental, ou ensinamentos divinos é pura falta de criticidade, quando não, falta de sinceridade e caráter epistemológico.

Posiciono-me assim contra a vã e tola crendice, de que “ações boas são divinas, e portanto lhes asseguram um bom lugar no céu, perto do(s) Deus(es)”. Ações boas são boas e ponto, elas fazem o bem a quem as pratica e a quem as recebe. Mas, elas irão lhe garantir algum bonûs no pós-vida? Morra e descubra. Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que não haja pós-vida. 

Agora, é diante a questões como estas, sobre a garantia de um bom pós-vida, que nossa sensatez, quando bem afinada e em dia, de forma orgânica, nos leva a “suspender o juízo”: sobre isso devemos nos calar. 

Atualmente, não precisamos ler Kant ou Wittgenstein para notar quando estamos ultrapassando os limites de nosso conhecimento, quando começamos a conjecturar. E temos o total direito de conjecturar, mas nenhum direito de exigir teor de veracidade àquilo que é uma conjectura, uma especulação. Algo que o cristianismo e o catolicismo desrespeitam a milênios e continuam a desrespeitar. 

Obviamente, o desrespeito epistemológico ocorre na filosofia e nas ciências também. Entretanto, em uma gradação muito menor que na religião. E, é diante desse desrespeito que deve ser praticada a “suspensão do juízo”.

Mas por que nos aparenta ser tão sedutora a ideia de prosseguir para além dos limites do que podemos responder? Falo disso no próximo ensaio intitulado “O fundamento egoísta da religião e da metafísica”.

Encerro esse ensaio dizendo que o labor de nossa sensatez levará a acurácia de nossa criticidade e de nossa sinceridade epistemológica. Nossa criticidade nos levará, respeitosamente, a nos calar, quando sabemos que há muito, para além do que sei a ser dito, ou que não há o que ser dito: o sagrado e mundano silêncio.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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