Criatividade e Criticidade

Criatividade e criticidade

nossa dupla natureza

Não faz muito sentido dizer que nossos tempos, nosso momento, a atualidade, é uma época pouco criativa, e pouco crítica; mesmo que ela seja extremamente acrítica e nada criativa. Sobretudo, porque adjetivar quantitativamente esses caracteres — criticidade e criatividade — exigiria algum outro momento da humanidade onde essa polaridade tenha sido substancialmente maior. E não podemos afirmar isso, apesar de tendermos, muitas vezes, a esse tipo de juízo; ou seja, a maior probabilidade é de que, de forma semelhante, todos os momentos históricos foram pouco críticos e pouco criativos. Justamente porque, ouso dizer, que esses caracteres se tornam simbólicos por seu impacto qualitativo, e não quantitativo; não somos, portanto, menos criativos que aqueles do Renascimento, ou menos críticos que os do Iluminismo ou da Grécia antiga, mas nossa expressividade crítica e criativa é menor, diante de outras expressões que nossa cultura possui, tal como o cultivo da “produtividade”.

Grosso modo, optamos por sermos produtivos, e não criativos, optamos por sermos úteis e não críticos. Contudo, o número de pessoas críticas, criativas, produtivas e úteis, proporcionalmente falando, sempre foi o mesmo, mudando somente o valor que uma cultura quer dar a esses caracteres e, assim, variando sua expressividade. 

Torne seu olhar agora a essas duas palavras que, de pronto início, foram tomadas como polares. Essas são duas faculdades irmãs, e podemos, sem necessidade de muitos aportes, afirmar que tratam-se de duas distintas manifestações da natureza no âmago do ser humano: a criação e a destruição. Como havia dito, não precisamos de argumentos ou aportes teóricos para notar essa polaridade na natureza, a evidência empírica mostra com clareza fenômenos de criação e fenômenos de destruição, assim como uma recíproca necessidade entre as duas potências.

A destruição possibilita que novas e diferentes formas de vida, espécies e fenômenos sejam criados, e assim ocorre todo o desenvolvimento da vida como a conhecemos. Dessa maneira, as potências naturais se apresentam na subjetividade humana como as faculdades da criatividade e criticidade: sendo a crítica possuindo o papel destruidor, e a criatividade o papel criador.    

A criatividade pode ser definida como uma faculdade de combinar repertórios sensíveis, conceituais ou simbólicos, em busca de criar novos símbolos, e conceitos. Esse repertório, por sua vez, encontra-se em nossa memória. Quanto mais vasto é o repertório de um indivíduo, maior será sua capacidade criativa. Por exemplo, a linguagem e toda sua gramática são frutos da imaginação. Ora, palavras não existem em canto algum, a não ser em nossa memória. Sondar, pois, a origem das palavras, exige que compreendamos que antes de poder forjar palavras com nossa faculdade imaginativa, em algum dado momento da humanidade nossa espécie aprendeu a combinar sons.

Aprofundar nesse aspecto exige que façamos uma imersão nos princípios da história e visualizemos o nascimento das primeiras palavras a partir dos primeiros sons. Se o exercício nos aparenta ser longínquo, e talvez improvável fenômeno histórico, busquemos a forma de aprendizado das palavras em uma criança: a criança possui um repertório de sons que ela apreendeu em sua memória ao longo de sua vida, desde seu nascimento, e aos poucos vai reproduzindo esses sons na busca de construir palavras que ela experiencia auditivamente. Em sua busca por construir as palavras, que são sons elaborados, ela forma palavras novas, tais quais um neologismo infantil, a faculdade em operação nesse formar de palavras é a imaginação, que está operando de maneira criativa.  

O jogo da criatividade, contudo, não estabelece limites a si próprio, e devido a sua especificidade de faculdade hedonista, qualquer um pode ceder a ela de forma a se embriagar, dando vazão desde as mais tolas ideias, até os mais insanos devaneios e as mais tresloucadas quimeras. Os frutos dessa embriaguez criativa não podem guiar o indivíduo na realidade, porque, não somente fazem com que suas ações se tornem socialmente incompatíveis, como também podem ejetar o indivíduo da realidade.

No entanto, existem os devaneios oníricos coletivos, que no fim das contas podem ser os mais mordazes. Esses devaneios se apresentam em forma de ideologias, tais como o nazi-fascismo, mitos, mitologias, teses científicas, e em doutrinas religiosas, com a ideia de Deus ou mesmo de uma substância chamada a alma. Esses devaneios coletivos, por mais que sejam meros devaneios, ainda assim nos aparecem como necessidades extremamente arraigadas no ser humano, de fato, inerentes e até mesmo imprescindíveis a nossa forma de vida. 

Por outro lado, toda quimera, por mais deslocada que seja do real, possui uma aparente forma que pode gerar uma sensação de que ela poderia ser real, tal como a ideia de um homúnculo, de um pégaso, ou mesmo a ideia de Deus. A forma de tudo aquilo que é criado na imaginação é dada pela criticidade, quando nossa faculdade de julgar opera associada com a imaginação. É também a criticidade que pode nos resgatar da embriaguez da criatividade, trazendo sensatez a esses sonhos imagéticos e sensíveis.                        

Como procede pois o exercício crítico?

Ele procede de modo comparativo, em outras palavras, de modo analítico; e isso que está sendo dito  não é uma  novidade, mas uma recapitulação da epistemologia de Kant.

Ao exercermos a criticidade, colocamos em funcionamento nosso julgar, diferenciar, comparar e conceituar. Ao julgar um objeto ou um distinto fenômeno, diferenciamos esse de outros objetos,. Essa diferenciação não pode ser feita sem uma comparação entre objetos semelhantes, e dessemelhantes: a comparação procede em uma análise que visa distinguí-los mais e mais e, por fim, damos um nome específico e esse objeto/fenômeno, eis o conceito. Isso dito de maneira bastante pontual e sumária, haja visto a profundidade e o detalhamento que a explanação dessa faculdade, de forma completa, exige. Os conceitos, por sua vez, são exatamente as formas que cerceiam os produtos da imaginação que aludimos a pouco.      

Se notarmos, não existe exatamente um proceder puro da criatividade e um proceder puro da criticidade. Na maioria das vezes eles ocorrem juntos, quando a gradação criativa é maior, o processo está ocorrendo na imaginação, e quando a gradação crítica é maior, ocorre no intelecto. 

Mas onde se encontram os parâmetros de comparação da crítica?

Eles também são frutos de nossa sensibilidade. E tal como frutos de nossa sensibilidade, os conceitos no processo de exercício da crítica, o campo empírico deve sempre ser mantido ao horizonte da vista, caso contrário podemos nos enredar em ilusões metafísicas, e de ordem mítica e religiosa. Sim, essas ilusões são muito mais comuns do que cremos. Aliás, a humanidade está repleta delas, quiçá, vivemos imersos sob mais ilusões que de fato de parâmetros corretos de julgamento. A austeridade e aspereza de nossa condição existencial, gerou uma forte tendência habitual de refúgio no mundo sublime das nuvens, no consolo metafísico das ideias.  

Eis pois, a função crítica de soprar e dissipar essas nuvens, e não nos ancorar, mas fazer a gente pousar e caminhar entre os jardins da vida cotidiana, tal como ela, e hic et nunc.  

Por fim, nossa saúde subjetiva e felicidade depende do quão vivemos alinhados à nossa natureza: quanto mais próximos mais saudáveis, quanto mais distante, mais enfermos. Se alinhar a nossa natureza, no sentido que propomos aqui, é sermos criativos tanto quanto críticos. Tarefa árdua e que poucas vezes tornou-se homogênea n’algum período da humanidade.

Eis o porquê do diagnóstico filosófico crítico de que a cultura ocidental se desenvolvera sob a condição de doente, um abandonar de nossa própria natureza — sem sequer olhar pra trás — conforme a doutrina de um neoplatonismo cristão; pois somente uma ideia original ou algum deus pode ser criador, mas, jamais destruidor — esse último somos nós, quando não seguimos a doutrina da ideia metafísica, ou os porta-vozes de deus, pois a voz do próprio jamais se ouviu torto tom, silvo ou mínimo gemido. Esquecemos que somos criativos e críticos, esquecemos que somos criadores e destruidores, e esquecemos que o temos que ser.

Sendo assim, se coloca como tarefa da filosofia: nos encontrar com nossa própria natureza de nós mesmos perdida, de nós mesmos esquecida.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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1 comentário em “Criatividade e criticidade: nossa dupla natureza”

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