Kant e a Revolução Copernicana da filosofia

Revolução Copernicana, a origem do termo

Que significa o termo “Revolução Copernicana”, quando esse se encontra atrelado ao âmbito, e a história da filosofia? De fato, muitos de nós já ouviu essa expressão, afinal, se trata de uma das expressões mais famosas na história da ciência. Sempre que a ouvimos, seu sentido ecoa em um momento específico da humanidade: a revolução científica que ocorreu no Renascimento, precisamente entre os anos de 1543 e 1687.

Dentre os vários aspectos e acontecimentos desse período, um dos primeiros se trata da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico: a teoria de que o nosso planeta Terra não é o centro do universo. Essa teoria de Copérnico, que mais tarde foi provada por Galileu Galilei, abalou todo o paradigma e a visão de mundo antiga — que se apoiava na tese do geocentrismo. 

O abalo causado pelo heliocentrismo foi tamanho, que atingiu até mesmo a crença e cotidiano das pessoas — eis o porquê de muitos cientistas do Renascimento terem sido perseguidos pela Igreja Católica. 

Ao contrário da Igreja, o filósofo iluminista Immanuel Kant era um grande entusiasta da revolução científica. Kant considerava que a revolução científica era um grande exemplo de progresso no que dizia respeito ao conhecimento humano. Ele ponderou que a sua atividade de ofício, a filosofia, encontrava-se estagnada desde o pensamento de Aristóteles. Kant admitiu que nesse grande período de mais de mil anos, não havia dado nada mais que alguns passos de formiga no sentido de inovação e de evolução da própria filosofia. 

Por um outro lado, Kant notou na atividade da ciência, especificamente a ciência experimental que nasce no Renascimento, um vigor de desenvolvimento bastante acelerado e eficiente se comparado com a estagnação filosófica. Assim sendo, se perguntou o porquê disso.

Qual a razão da atividade científica progredir em um século mais do que a filosofia progrediu em um milênio?

Eis a pergunta que Kant se fez, e essa pergunta foi respondida pelo fato de existir, na filosofia até então, uma preponderância anárquica de problemas metafísicos, bem como uma ausência de criticidade quanto a própria capacidade e limites do conhecimento humano. A ciência moderna, por sua vez, com seu caráter experimental, evitava a demasia de elucubrações metafísicas e, ainda, respeitava, os limites de nossa faculdade racional. 

Para solucionar essa estagnação da filosofia, Kant, inspirado na ciência moderna, pretendeu realizar uma “revolução copernicana” na estrutura operacional filosófica. Essa revolução permitiria a filosofia retornar aos trilhos do desenvolvimento e progresso do conhecimento.

Assim sendo, essa revolução se constituía em um dos principais objetivos de sua filosofia e se tornou um projeto de crítica ao conhecimento humano e ao conhecimento filosófico. Nesse projeto, Kant escreveu três de suas principais obras: Crítica da Razão Pura, publicada em 1781, a Crítica da Razão Prática, publicada em 1788 e a Crítica do Poder de Julgar, publicada em 1790.

Mas alto lá! Um instante. Está um tanto quanto complexo, não? Vamos prosseguir esmiuçando esse assunto, compreender por que esse projeto crítico, realizado durante anos por Kant, se tratou de uma revolução na história da filosofia.

O projeto crítico kantiano; uma revolução epistemológica

Tomemos, primeiro, nota às palavras do próprio pensador a respeito da origem de seu projeto crítico: 

Até hoje se assumiu que todo conhecimento teria de regular-se pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso conhecimento, fracassaram sob essa pressuposição. É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se coaduna com a possibilidade, aí visada, de um conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre os objetos antes que nos sejam dados. Isso guarda semelhança com os primeiros pensamentos de Copérnico, que não conseguindo avançar muito na explicação dos movimentos celestes sob a suposição de que toda a multidão de estrelas giraria em torno do espectador, verificou se não daria mais certo fazer girar o espectador e, do outro lado, deixar as estrelas em repouso. Pode-se agora, na metafísica, tentar algo similar no que diz respeito à intuição dos objetos. (KANT, 2021, p. 28)

Mesmo que extensa, e aparentar assustadoramente complexa, vale a pena ler as próprias palavras do pensador, para ver como ele mesmo via seu intento. Contudo, antes de esclarecer o que Kant queria dizer com essas palavras, façamos uma breve incursão à história moderna da filosofia, haja visto que Kant, em seu projeto crítico, visava também responder uma determinada querela da filosofia moderna: a querela entre as teses racionalistas e empiristas a respeito da origem do conhecimento humano. 

Dentre os principais representantes da filosofia racionalista se encontra o filósofo René Descartes, e entre os empiristas, por exemplo, encontra-se o famoso filósofo David Hume. Os empiristas e os racionalistas se contrapunham em relação à origem do conhecimento.

De acordo com os empiristas, todo conhecimento era derivado da experiência. Já de acordo com os racionalistas, o conhecimento mais valioso, verdadeiro e autêntico, é conseguido através do uso da razão, do pensar, sempre evitando nossas impressões sensíveis, que poderiam confundir e desviar o pensamento. Além disso, para todo racionalista, a razão era algo inato. 

Assim, a querela entre os empiristas e os racionalistas apontava, muitas vezes, para aquela espécie de problema metafísico insolúvel que Kant considerava como uma estagnação na filosofia.

Para sair desse enredamento paradoxal, Kant operou em sua chamada “revolução copernicana” notando que, mesmo sendo teses antípodas uma a outra, o racionalismo e o empirismo mantinham uma mesma perspectiva — e quiçá o mesmo erro — que era sempre de manter o “objeto do conhecimento” como foco de suas teses. Sendo assim, ele sugeriu que quem deveria ser investigado primeiramente deveria ser o “sujeito do conhecimento”. Somente após esse ser completa e minuciosamente investigado, é que se poderia investigar com segurança o “objeto”: eis, o porquê de sua primeira obra crítica se denominar “crítica da razão pura”.

A razão é um instrumento com o qual nós produzimos nosso conhecimento, e Kant pretendia investigá-la, criticá-la. Assim, estabelecer suas formas de uso, suas adequações, suas faculdades, seus alcances e limites, enfim, toda a arquitetura e funcionamento de nossa mente, enfim, uma completa epistemologia do sujeito do conhecimento.

A mudança de perspectiva e paradigma a Copérnico

A essa mudança metodológica de perspectiva, o próprio Kant evocou o termo “revolução copernicana” para referir-se a ela.  Essa mudança é o que está presente na citação que fizemos anteriormente logo quando ele evoca o nome de Copérnico, vejamos novamente: “Isso guarda semelhança com os primeiros pensamentos de Copérnico (…)” Com o “isso” ele se referia exatamente a essa mudança de perspectiva do enfoque do “objeto” para o enfoque e a análise do “sujeito”. E isso é o que ele quer dizer com “girar o espectador e, do outro lado, deixar as estrelas em repouso”.

Esse “giro do e no espectador” é a revolução que iria mudar completamente o paradigma da disciplina filosófica epistemologia: algo que se tornou, na atualidade, as bases para a neurofisiologia e a neurociência. E, algo, que para Kant poderia retomar a filosofia para os trilhos do progresso e da ciência. 

Com sua epistemologia, Kant conseguiu equacionar de maneira satisfatória o problema entre o racionalismo e o empirismo. Não deixa de ser, no entanto, a “revolução copernicana” uma sugestão implícita da própria tese empirista de David Hume, tal como o próprio Kant confessou. Mas, esses dois assuntos, já são pautas para um próximo texto!

Referências

ABBAGNANNO, A. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
____. Crítica da faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e Antônio   Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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