Sketch de Søren Aabye Kierkegaard, Niels Christian Kierkegaard (1840) recortado sobre a pintura A Barca de Dante, Eugène Delacroix (1822)

Kierkegaard e os estádios da existência

Segundo o filósofo Søren Aabye Kierkegaard, nós nos construímos como seres humanos no mundo: 1) lidando com uma sensação ininterrupta de angústia e 2) buscando, diariamente, sentido para as nossas vidas. Esses dois conceitos kierkegaardianos, angústia e sentido, lançaram as bases daquilo que viria a ser o “existencialismo” no século XX e tornaram Kierkegaard o pai do existencialismo.

Mas quem é Kierkegaard?

Kierkegaard é um filósofo dinarquês nascido em 1813 em Copenhague. Dentre seus principais escritos se encontram as obras O Diário de um sedutor e Temor e Tremor, ambos de 1843, e O Conceito de Angústia, de 1844. O filósofo mantinha o pensamento cristão como base e verdade para todos os seus desdobramentos filosóficos. Então, sua filosofia é uma teologia, no fim das contas.

Com isso, Kierkegaard construiu sua teologia sob uma crítica severa a muitos pensadores alemães do século XIX, principalmente a Hegel. E devemos, pois, levar em consideração que, nessa época, criticar Hegel não era uma das tarefas mais fáceis, pois o filósofo sistemático foi, durante muitos anos nesse período, o grande filósofo popular e aclamado.

Conforme comentam Reale e Antiseri a respeito dessas críticas de Kierkegaard:   

E com franqueza corajosa que, em nome daquela indedutível realidade que é o indivíduo, Kierkegaard ataca a filosofia especulativa, especialmente o sistema hegeliano. Diz ele: “A existência corresponde à realidade singular, ao indivíduo (o que Aristóteles já ensinou): ela permanece de fora, e de qualquer forma não coincide com o conceito […]. Um homem singular certamente não tem existência conceitual”. (2005, p. 229) 

Não daremos conta aqui de esmiuçar todo o conteúdo dessa crítica a Hegel, contudo, como podemos ver na citação, um dos aspectos fundamentais dessa crítica é a “irredutibilidade” do indivíduo singular a qualquer conceito, ou sistema.

Para Kierkegaard, o sistema hegeliano engloba e conceitualiza completamente a esfera individual. Eis o porquê de ele ser considerado o primeiro filósofo existencialista: sua filosofia é erigida com foco na liberdade e com pilar na existência individual. 

Antes de mais nada, portanto, é de grande contribuição entendermos, de forma breve, um dos pináculos do pensamento de Kierkegaard: o conceito de indivíduo.

Melancolia, Edvard Munch (1891)

O conceito de indivíduo

Tal como nota Kierkegaard, os pensadores sistemáticos não estão se debruçando sobre o indivíduo de fato. Quando se referem a esses, estão se referindo à humanidade e não a indivíduos singulares. Tal como no sistema hegeliano, o interesse dos sistemáticos sempre se concentra no gênero humano como um todo.

Na acepção kierkegaardiana, por sua vez, tudo passa pelo indivíduo, e através do indivíduo tudo que há na vida é experienciado: o tempo, a história, a humanidade. A existência autêntica, para Kierkegaard, também só pode ser alçada pelo indivíduo e não pela humanidade; tal como previsto na dialética de Hegel. Sendo assim: 

Existir deve ser uma imperfeição se comparado com a vida eterna da idéia, contudo uma perfeição em relação a nem existir. Essa situação intermediária é, aproximadamente, o existir que serve para um ser intermediário como o ser humano. (Kierkegaard apud Hennigfeld, 2000, p. 117)

Na visão kierkegaardiana, os sistemáticos estão ancorados na perfeição da ideia; na filosofia de Hegel, por exemplo, toda a história da humanidade é vista como a formação da tomada de consciência da própria ideia. Para Kierkegaard, isso é um verdadeiro sufoco à existência, de fato, que é o indivíduo singular.

No entanto, como bem podemos ver, o filósofo dinamarquês pondera que a existência humana é imperfeita perante o todo, mas, plenamente perfeita perante si mesmo, é o que está posto na referência a uma condição de perfeição intermediária a um ser intermediário. Por fim, essa perfeição só é alcançada na vida voltada à fé religiosa.  

Tal como já dissemos aqui, os valores cristãos servem de pano de fundo de todo pensamento de Kierkegaard. Por exemplo, os seres humanos são superiores aos animais, pois em sua qualidade de indivíduos e não somente como espécie, eles podem se relacionar diretamente com Deus, através de sua “fé”. No entanto, os indivíduos humanos não estão todos em relação com Deus, pois somente no chamado “estádio religioso” um indivíduo se encontra na relação ideal com Deus:  

No Diário de um Sedutor — com o qual termina o primeiro volume de Aut-Aut — Kierkegaard delineia o ideal estético da vida do sedutor, que vive segundo a segundo, dispersando-se na multiplicidade sem autêntico desempenho ético, e dissipando-se no prazer. E dessa forma de vida, que é precisamente o ideal estético, sai-se com um salto (eis o aut-aut), que leva a vida ética e depois à vida da fé. E segundo Kierkegaard, é exatamente a vida da fé que constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita, vista como o encontro do indivíduo com a singularidade de Deus. (Reale e Antiseri, 2005, p. 227)  

Passemos agora a entender o que são exatamente esses estádios.

Desespero ou Autorretrato, de Gustave Courbet (1843-1845)

Os estádios da existência

Primeiramente, devemos elucidar aqui que os estádios da existência não são estágios estanques dos indivíduos — como se uma pessoa fosse apenas um indivíduo estético, outra um indivíduo ético, e assim por diante —, mas se trata mais de etapas de desenvolvimento de qualquer indivíduo. De acordo com o próprio filósofo: 

Se antes eu usei a expressão ‘estádio’, e continuarei a usá-la em seguida, não necessita deduzir que cada estádio singular exista autonomamente, um fora do outro. Teria sido melhor se tivesse usado a expressão ‘metamorfose’. (1955, p. 36).

A palavra metamorfose, por sua vez, alude a esse processo de desenvolvimento ao qual nos referimos. Devemos a partir disso notar que uma subjetividade que se encontra em um determinado estádio, tal como o estádio estético, pode apresentar traços do estádio ético, já que está em constante transição de um estádio para o outro.

Os estádios, por sua vez, jamais podem ser vistos como caracteres homogêneos, mas como âmbitos que se atravessam e se comunicam constantemente.      

Primeiro estádio.

Podemos dizer que o primeiro estádio, o estádio in natura do indivíduo humano é o estádio estético. Nas palavras de Kierkegaard: “a estética em um homem é aquilo pelo qual esse homem é, imediatamente, o que ele é, ele que vive na estética, pela estética, da estética e para a estética que há em si mesmo, vive esteticamente” (1955, p. 112).

Em suma, a vida estética é a vida pelo prazer: o indivíduo busca a satisfação estética em seu presente imediato. Como o fruir desses prazeres não pode ser estendido por muito tempo, a busca da existência desse indivíduo é um saltar de gozo a gozo que ele vai vivendo. Em função de seu sentido de vida, esse indivíduo não se prende a nada que vá fazer com que ele tenha que abdicar de seus prazeres. Esse estado de existência, contudo, é um estado que gera um grande desespero nessa existência, e esse desespero, consequentemente, se torna angústia.   

Segundo estádio.

Para sanar sua angústia, na tentativa para que ela não leve esse indivíduo ao perecimento mortal, ele vai se metamorfoseando no estádio ético. Em breves palavras, nesse estádio o indivíduo se guia, cotidianamente, através de uma noção moral, a noção de bem e mal

A partir desse contexto ético, o indivíduo deixa de guiar-se por suas aspirações ao prazer e se inclina a uma vida que julga as ações a serem realizadas conforme critérios morais. Perpassa ainda, uma noção nesse indivíduo de que essa maneira ética de viver, no fim das contas, irá acarretar em benefícios, que o desregramento prazeroso não pude lhe conferir.

Por exemplo, a adequação moral acarretaria em um equilíbrio e harmonia em sua vida, advindo do estar vivendo conforme normas aprovadas pela sociedade como um todo.

Nesse estilo de vida, contudo, a angústia que é sanada, angústia provinda da vida estética, torna-se um arrependimento. Esse sentimento surge do fato de que a vida não se mostra tão justa quanto a adequação moral prometia; o fato desse sujeito tentar ao máximo viver de forma correta e boa não lhe dá garantia alguma de que ele será tratado pelos outros de forma correta, boa e justa, nem pelos outros, e nem pelas instituições que o cercam. Nota-se assim, diante da vida ética, que a vida não é justa.

Terceiro estádio.

Na acepção de Kierkegaard o arrependimento ético, só pode ser sanado por um salto de fé. Esse salto solapa a existência individual para a existência religiosa

O salto de fé é um lançar-se para o nada, tal qual sem nada esperar em retribuição, o nada é o pano de fundo para que todas as possibilidades existenciais do homem venham a se tornar alguma coisa, ou que, de outra maneira, simplesmente o abismo seja encontrado. (Ericksen, 2019, p. 28)        

Esse salto se constitui em nada menos que a supressão da vida ética e a completa devoção à fé. Kierkegaard afirma que esse salto é análogo à ação de Abraão no livro 22 de Gênesis do antigo testamento da Bíblia. A fé de Abraão era tão forte que, sem titubear ou questionar, ele estava disposto a sacrificar seu filho, Isaque, a pedido de Deus, crente que as ordens do senhor, por mais que controversas, sempre estarão corretas.

No existencialismo de Kierkegaard, a única verdadeira existência da finitude da condição humana é a vida religiosa, que faz com que o espírito humano se encontre com a verdade do espírito divino.

Caminhante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich (1818)

Como podemos notar de forma bem explícita, a filosofia de Kierkegaard consiste em uma teologia cristã centralizada na experiência do indivíduo. Além de estar voltado para esses estados da existência individual, o filósofo dinamarquês pondera que avançar para além da reflexão sobre nossa experiência subjetiva é uma espécie de infração epistemológica; sem usar propriamente destes termos, sua teologia se influencia nesse sentido pela crítica kantiana. 

Por fim, eis porque a filosofia de Kierkegaard é a fundadora do chamado existencialismo cristão; há, em contrapartida, uma outra vertente do existencialismo, o chamado existencialismo ateu, representado por pensadores como Jean Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir — mas este é um papo para outra hora

Até a próxima!

Referências

ERICKSEN, L. “Transições dos estádios da vida em Kierkegaard e suas perspectivas teológicas” In  Veritas | Porto Alegre | Vol. 64, n. 1, jan.-mar. 2019.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991. 

______________. O conceito de angústia. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2011.

______________. Diário íntimo. Tradução e notas de María Angélica Bosco. Buenos Aires: Santiago Ruenda – Editor, 1955.

HENNIGFELD, J. “O pensador subjetivo” In Filósofos do século XIX. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2000. 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia, 5: do Romantismo ao empiriocriticismo. Tradução: Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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