O ceticismo de Pirro

O ceticismo em Pirro

Origem do ceticismo

O ceticismo é uma corrente filosófica que nasce na antiguidade, exatamente onde muitas outras correntes de pensamento também nasceram, na antiga Grécia. Apesar de possuir diferentes vertentes ao longo do desenvolvimento da humanidade, o ceticismo apresenta um núcleo conceitual, e esse núcleo pode ser visualizado no pensamento do filósofo Pirro de Élida (360 a.C – 270 a.C). 

Filósofo do grande período helenísitico grego, Pirro como muitos outros pensadores da época, não nos deixou nada por escrito. Contudo, seu pensamento foi difundido por outros pensadores e correntes da filosofia, sobretudo por Tímon, um dos seus principais discípulos.

Pirro funda o ceticismo a partir da designação de três caracteres fundamentais da realidade e das coisas na realidade. Esses caracteres são:

  • incomensurabilidade
  • indiferenciação
  • indiscriminação

Isso significa que os fenômenos que nos cercam, são impossíveis de medir, diferenciar e discriminar. Vamos explicar à frente.

Fundamentos do ceticismo

Fundamentos do ceticismo

Tal como argumenta Reale e Antiseri (Cf: 1990), o que o pensamento de Pirro nos leva a crer, é que, devemos considerar que nosso instrumento de cognição não seja adequado a medir, a diferenciar e discriminar as coisas na realidade. No entanto, essa é uma fundamentação que o ceticismo irá desenvolver posteriormente a Pirro. Muitos dos testemunhos sobre o ceticismo pirrônico apontam para o fato de que, nessa visão sobre a realidade, o filósofo, de fato, considerava as coisas como realmente incomensuráveis, indiferenciáveis e indiscriminadas.

Assim sendo, as coisas do mundo, a matéria propriamente dita, era o que confundia os sentidos quanto ao senso da verdade e falsidade. Resumindo, para Pirro, as próprias coisas do mundo são “aparência”: não possuem ordem, não possuem distinção e são provisórias.            

Distintamente dos traços do ceticismo mais comuns na modernidade e na contemporaneidade, que veremos adiante nesse texto, a consideração de nosso conhecimento se assentar na mera aparência das coisas, de acordo com Pirro, se funda na ideia de que, diante do “bem” e do “divino”, tudo não passa de uma mera aparência. Não se trata assim, de um dualismo entre “coisa em si” e “aparência”, como em Kant na modernidade, mas de uma crença de que, diante do “bem” verdadeiro, nós só teremos acesso a aparências.

O ceticismo de Pirro possui em seu plano de fundo um tom de religiosidade, uma espécie de misticismo onde a contraposição é colocada entre o mundo material (as coisas) e o “bem” e o “divino”. As coisas são instáveis, o “bem divino”, estável.

Diante desse contexto, o melhor discurso sobre as coisas que podemos ter, haveria de ser, no fim das contas, o calar-se. Em outras palavras, a suspensão do juízo.

Epoché

A Epoché

Esse ato de “calar-se”, a suspensão do juízo, é conhecido como a “epoché”, termo de origem grega. No século XX, o filósofo Edmund Husserl, o fundador da fenomenologia, irá resgatar esse termo antigo e irá agregá-lo ao método da filosofia fenomenológica.

Husserl afirma que, ao nos debruçarmos sobre a investigação da realidade, devemos, pois, suspender todo e qualquer juízo que possuímos, não só suspender nossos juízos prévios, mas também procurar suspender até mesmo nossos instrumentos cognitivos.  

A função da suspensão do juízo em Husserl é algo diferente da Epoché vislumbrada por Pirro. Afinal, não só porque dois milênios separam esses pensadores, mas, porque as ideias de seus pensamentos eram bem distintas, e os pressupostos de Husserl já dialogam com as discussões modernas do criticismo. Husserl era um grande defensor da ciência, e de sua preponderância em nossas vidas, apesar de um grande crítico da mesma; na antiguidade existia somente uma pré-ciência e, como vimos Pirro, mantinha uma boa dose de misticismo em seu pensar.

Para ele, a epoché é uma redução do conhecimento a duas realidades:

  • a psicológica: que é negar o fato de que as constatações empíricas são suficientes para fundamentar o verdadeiro conhecimento;
  • a transcendental ou fenomenológica: que propõe colocar a própria consciência em suspensão, juntamento com o que nela signifique o “eu” e como ela age.

Contudo, não deixam de ser esses dois usos do mesmo ato cético, a Epoché. E no que concerne a esse ato de ordem cética, ela se encontrará presente em muitos outros pensamentos e filósofos ao longo da humanidade. Mais a frente, veremos dois exemplos de uma espécie de Epoché: no filósofo moderno Kant e no contemporâneo a Husserl, Wittgenstein.

O bem viver

O bem viver

Assim como muitas das filosofias gregas antigas, o ceticismo também está interessado no bem viver.

Na antiguidade, a preocupação de empregar a filosofia para gerar um cotidiano e uma vivência melhor se tratava de uma prerrogativa de quase todos os pensamentos filosóficos. Pirro, portanto, não deixa de apontar as consequências de sua epistemologia cética para o viver do indivíduo.

Essas consequências se precipitam em uma vida “sem expectativas” e, assim sendo, uma vida imperturbável. Essa imperturbabilidade, por sua vez, se trata da tão aclamada “ataraxia”, um estado de espírito bastante almejado pelos pensadores helênicos.

De acordo com Pirro, portanto, a ataraxia deriva-se diretamente da chamada afasia, um dos caracteres principais do ceticismo. Vejamos pois, uma citação que nos elucida diretamente sobre o significado desse termo:

Escute a melodia de olhos fechados, pensando apenas nela, não justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado imaginário as notas que concebeis assim uma pela outra, que aceitam então tornar simultâneas e renunciam à sua continuidade de fluidez no tempo para se congelar no espaço: encontrareis individida, indivisível, a melodia ou a porção da melodia que tiveres recolocado na duração pura. Ora, nossa duração interior, encarada do primeiro ao último momento da vida consciente, é alguma coisa como essa melodia. Nossa atenção pode se desviar dela e consequentemente de sua indivisibilidade; mas, quando tentamos a separar, é como se Em sentido filosófico, é a atitude dos céticos na medida em que abstêm-se de pronunciar-se, de afirmar ou de negar alguma coisa a respeito de tudo que é “obscuro”, isto é, que não move a sensibilidade de forma a produzir uma modificação que induza necessariamente a assentir. (…) é, assim, a abstenção do juízo vinculada à suspensão do assentimento. (2007, p. 19)

No ceticismo, o estado de ataraxia também está atrelado à felicidade, assim como em muitas das correntes de pensamentos helênicos. E para o cético, a afasia é uma condição sine qua non para a felicidade. Portanto, para ser feliz é necessário não criar expectativas e não sofrer quando não entendermos determinados aspectos da realidade e da vida, e em alguns casos nem ao menos desejar entender determinadas coisas. 

Para Pirro, para que sejamos felizes é extremamente necessário que saibamos viver sem a verdade, porque pode ser que a verdade não acrescente muito a nossa vida. Por outro lado, a inquietação com a busca incessante por essa, pode gerar danos consideráveis a um bem viver, chegando mesmo a tirar a paz completa de quem a persegue, como se isso lhe fosse seu último desejo na vida.

O ceticismo contribui, portanto, para um equilíbrio em nosso viver, para uma ponderação.

O ceticismo na história

O ceticismo na história

Os ecos do ceticismo estão por toda a humanidade. No século XX, o filósofo Wittgenstein encerra uma de suas grandes obras com a máxima: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (2008, pág.281). Essa frase traz exatamente o que na Grécia antiga era entendido como “afasia”. 

Uma espécie de afasia pode ser vista dentro do pensamento crítico de Immanuel Kant. Em sua Crítica da Razão Pura, o filósofo defende que nosso conhecimento sobre o mundo externo é completamente apreendido como fenômeno, e jamais como “coisa em si”. Esse traço nos remete, inevitavelmente, à descrição epistemológica de Pirro que fora aludida anteriormente nesse texto. E, nesse sentido, Kant prossegue dirigindo uma rígida crítica a toda a tradição metafísica que o antecedeu, e essa crítica quer exatamente denunciar os abusos que a metafísica comete ao tentar sobre aquilo que a cognição humana não pode de fato apreender. 

O projeto epistemológico de Kant se dá através de uma investigação detalhada e acurada de nossa razão, para demonstrar sobre o que podemos seguramente falar e sobre o que devemos calar. Por exemplo, nos assuntos sobre Deus ou mesmo imortalidade da alma, de dentro da ciência e da filosofia devemos sempre nos calar sobre esse tipo de conteúdo, pois eles se encontram além dos limites de nossa razão.

Kant ainda mostra que, sempre que tentamos abordar assuntos desse tipo, eles se mostram aporéticos. Em outras palavras, dialéticos, cada qual pode trazer uma resposta genuína e aparentemente lógica, mas que, contudo, podem vir a ser respostas completamente antípodas sobre uma mesma pergunta ou problema. Essa característica tão contraditória de respostas a uma mesma pergunta se assenta no fato de que essas questões se encontram além de nosso poder de conhecer. Entramos no território do que Kant chama de “dialética” (assunto que abordaremos em outro conteúdo).       

Não podemos dizer, categoricamente, que Immanuel Kant, ou mesmo Ludwig Wittgenstein são céticos, até porque os mesmos negariam, de certa forma, serem enquadrados na escola cética tradicional.

No entanto, os traços e gradações do ceticismo são notáveis e explícitos em suas filosofias. No que concerne a Kant, temos até mesmo um estudo que afirma que:

Freqüentemente se pensa que Kant tentou erradicar o ceticismo da filosofia, recolocando a metafísica sobre fundamentos novos e inabaláveis. Esse teria sido o triunfo sobre Hume por ele almejado. Na realidade, as coisas são bem diferentes. Kant não tentou expurgar o ceticismo, mas, pelo contrário, levá-lo às últimas conseqüências para poder, depois dessa radicalização, domesticá-lo definitivamente (Loparic, 1988, p. 67).

Por fim, se considerarmos que em seu cerne o ceticismo deve possuir os traços místicos e religiosos que Pirro preconizava, talvez nem Wittgenstein nem Kant devem ser considerados como autênticos céticos. Mesmo assim, devemos ponderar que os traços do ceticismo, como a “afasia”, são traços presentes em muitos pensamentos ao longo de toda a humanidade.

Referências

ABBAGNANNO, A. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

REALE. G. História da filosofia, I: Antiguidade e Idade Média. Reale, D. Antiseri: [tradução Ivo Storniolo]. – São Paulo: Paulus, 1990.

KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LOPARIC, Z. (1988). Kant e o ceticismo. Manuscrito, v. 9, n. 2, pp. 67-83.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

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