Em preto e branco, a lombada de um livro preto com a palavra "Filosofia" escrita em dourado e em caixa-alta. Um relógio de pulso de metal prateado vintage está apoiado na lombada.

Sobre o ato de filosofar

ou da nostalgia e do tempo

O ato de filosofar poderia ser entendido como uma luta contra o tempo. Uma tentativa mortal de se tornar eterno, tal como as ideias, ou os deuses. Uma maneira de se suspender da mudança e, no fim das contas, suspender-se da própria vida.

Pois vida é mudança.

Porém, essa não é uma definição que quer encerrar o debate sobre a natureza da filosofia. Ela busca apenas refletir, de maneira breve, sobre esta face do filosofar: o impulso de revolta contra o tempo, ou a melancólica, quiçá bela e poética, nostalgia.

Ao fundo, um papel de parede cinzento com estampa de arabescos. À frente e na base da imagem, diversos relógios de tamanhos e épocas diferentes.

Em um livro bastante minucioso, estiloso e peculiar — o qual li diversas vezes para apreender seu conteúdo e forma — encontrei a seguinte frase sobre a natureza da filosofia:

“Filosofia é, na verdade, nostalgia, um impulso de sentir-se em casa a qualquer parte”

O curioso título do livro em que essa passagem está é A Teoria do Romance, uma das poucas obras da humanidade que busca compreender aspectos psicológicos de nossa cultura e de nossa sociedade através da forma e do conteúdo de obras literárias.

A frase, no entanto, não é criação do autor do livro, o jovem Georg Lukács, mas sim uma citação retirada de O Borrador Universal, do romântico Novalis. 

Porém, a frase harmonizou-se com maestria à narrativa e à problemática do livro A Teoria do Romance — como se, definitivamente, fizesse parte da escrita de Lukács —, pois o autor criou uma organicidade com o sentido romântico emprestado de Novalis.

E o orgânico, a nós, muitas vezes, soa belo. 

Ao trazer a frase aqui, a uso mais no contexto filosófico do jovem Lukács do que nos ditames do romantismo de Novalis — apesar de Lukács se inclinar ao romantismo em muitos aspectos de seu tenro pensamento.

Por, inicialmente, achar muito peculiar e atraente a identificação do ato de filosofar com o sentimento de nostalgia, escolhi principiar essa reflexão trazendo essa frase. E assim, desenvolver uma breve e prazerosa reflexão a respeito da natureza do filosofar. 

(Não me atrevo a identificar a filosofia à nostalgia, algo que considero até mesmo uma redução desse fenômeno/atividade humana.)

Em tons acinzentados, um livro em pé aberto, sem texto, uma escada apoiada no livro e um homem sobre a parte superior das páginas olhando adiante, para o fundo da imagem.

Para prosseguir, é necessário delimitar o que a palavra nostalgia nos figura, já que toda palavra pode nos gerar uma determinada imagem, além, é óbvio, de sua definição.

Preciso ainda asseverar que usamos, cotidianamente, muito mais as imagens sob as palavras do que seus significados, suas definições. Por exemplo, quando você escuta a palavra “mar”, ou a palavra “chuva”, sua mente traz uma imagem à sua consciência e, geralmente, quando a imagem é nítida e clara, você nem se reporta ao significado da palavra. Se me pedem que eu busque uma escada, a imagem já satisfaz o entendimento sobre aquilo que preciso buscar, realizo a ação e não preciso checar a definição de escada; no mais, posso dizer que a própria imagem da escada já afere sua definição.  

Existem palavras, no entanto, cuja imagem não nos é dada à consciência pela mente de forma direta: é o caso da palavra nostalgia.

A palavra nostalgia não causa uma imagem unívoca a todas as pessoas que a escutam. Em determinadas pessoas, talvez, ela nem cause qualquer imagem. Nesse caso, ela se torna uma palavra que exige uma consulta de seu significado. 

Interessa-me, então, trazer à baila a imagem de nostalgia, apesar de que, primeira e inevitavelmente, precisarei elencar o seu significado.

Em preto e branco, uma câmera analógica Fujifilm pendurada em um galho de uma árvore.

Encontramos como significado curto e mais difundido de nostalgia a seguinte definição:

“melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal”

Partindo desse significado, nos deparamos com um estatuto de enfermidade psíquica, tal como foi considerada a nostalgia durante a modernidade. Se nos aprofundarmos aqui, descobriremos que esse estado está atrelado a uma espécie de “saudade idealizada”, saudade de algo que, por acaso, jamais fora do jeito que sentimos. 

De todo modo, o que realmente importa à nostalgia não é o fato, mas como sentimos o fato.

A nostalgia é, assim, o desejo de regresso, de retorno, a um determinado momento e lugar, mas, um desejo sentimental. Ela é um desejo sob lembranças de momentos que nos geraram alegria e felicidade.

Sentir nostalgia pode vir a ser uma via de duas mãos:

Tendo em vista que as lembranças podem nos gerar resquícios de alegria e felicidade — ora essa, afinal, são boas, ótimas memórias! — Por outro lado, pode vir à tona a dor psíquica de não poder jamais reviver essas lembranças, já que os lugares se modificam, as pessoas se modificam e nós próprios nos modificamos, assim como nossos sentimentos e nossa forma de sentir.

A nostalgia pode se reportar, portanto, a algo eternamente perdido no tempo.

Num ambiente surreal, com relógios misturados ao um céu nublado, um idoso de chapéu e bengala caminha sobre um chão de terra rachado.

Em busca da saudade idealizada, surge a saudade da época onde éramos perenes, e imortais, onde nem a morte e muito menos a vida, nos vencia — eis o que perdemos eternamente no tempo.

Acometidos por essa nostalgia, nos colocamos a serviço do espanto sobre nossa própria existência, sobre aquilo que é o contingente, a mudança natural. Desse espanto brotam questões, reflexões…

Foi assim que nasceu a metafísica.

Se na física estamos sujeitos a mudar, a desaparecer, na metafísica somos imortais, porque somos ideias, somos ideais. Ou seja, metafísica, a filosofia primeira, é filha da nostalgia.

Tanto a nostalgia, como a metafísica se encontram presentes, podemos dizer, em todas as formas de organização humanas desde sempre — desde que a nostalgia causou espanto sobre o cotidiano humano, e se revoltou contra o tempo.

Ao fundo, a Via Láctea. À frente, a silhueta de uma pessoa ao longe parece observar as estrelas.

A metafísica é a base da religião, e de todas as religiões. Nelas, sem exceção, estamos sempre envoltos de um saudosismo ideal, que se tornará real assim que nós próprios sejamos somente ideia, assim que desencarnarmos.

Sair da carne, sair da physis, para sermos atemporais.

Assim sendo, a filosofia como nostalgia, é uma forma de lutar contra o tempo; ou, para além disso, é uma forma de compreender e de manipular o tempo.

Márcio MOSS
Márcio MOSS
Doutorando em filosofia pela Unifesp e Ufop; é graduado em Artes Cênicas e mestre em Filosofia da Arte também pela Ufop; Atua como dramaturgo, diretor e interprete e como pesquisador dramatúrgico. Além de ser pesquisador e roteirista de vídeos do canal Filosofares no Youtube.

Veja também...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

8 + 1 =

Carrinho de compras